Realmente parece não ter mais volta. Os protestos tomaram conta de milhares de cidades em todo o Brasil e porque não dizer, também fora do país. De fato, “o gigante acordou” e o povo saiu às ruas, por variados motivos, mas um em comum: o desejo de gritar “basta” a um sistema formador de vítimas, que beneficia um grupo pequeno enquanto oprime milhões, tirando desses direitos humanos fundamentais. Fomos às ruas clamar por transporte de qualidade, educação, saúde e protestar contra a corrupção e a má gestão do dinheiro público. Fomos às ruas gritar: “justiça!”. No entanto, do ponto de vista cristão-evangélico, muitos possuem dúvidas da legitimidade de participação ou da base bíblica na luta pela justiça. Fato é que a luta é para todos, independente de cor, credo ou classe social. A luta pela justiça e pela dignidade humana é de todos os seres humanos. Porém, sobre isso, algumas considerações importantes devem ser feitas no âmbito dos discípulos de Cristo.
O discípulo de Jesus luta no modelo da não violênciaDiscípulos de Jesus Cristo vão e devem ir à luta por justiça sim. Faz parte do conjunto de obras que a nova vida em Cristo traz. Todavia, Jesus veio para ensinar a espiritualidade do amor e da paz. O modelo da não violência é um modo de vida do seguidor de Jesus Cristo. Em João 8, no episódio da mulher adúltera, por trás de todo o ensinamento da graça e da igualdade de todos frente ao pecado, há um ensinamento de Jesus sobre a paz. Ele diz “aquele que não tiver nenhum pecado, que atire a primeira pedra” e ensina ali que a violência não resolve, a graça resolve. A violência não resolve, a autorreflexão resolve. A violência não resolve, o amor resolve. Outro episódio fatídico é o de Pedro partindo para a briga quando os soldados romanos querem prender Jesus. O que o apóstolo ouve do Mestre é “Mete a tua espada no seu lugar; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão” (Mateus 26:52). Jesus alerta que aqueles que são violentos sofrerão violência.
Infelizmente, para justificar a violência, vejo alguns se valendo do texto de Marcos 11:15-18 quando Jesus expulsa os vendilhões do templo. Ele expulsou de maneira enérgica (diferente de violenta), pois aqueles homens estavam roubando a preparação para o culto, e minando a comunhão entre Deus e os homens. Além do mais, a limpeza do templo foi escatológica, cumprimento de profecias. Nenhum dos apóstolos de Jesus o imitou posteriormente nisto, muito embora os doze em Jerusalém continuassem a ir ao templo diariamente, após Pentecostes, para as orações, e muito embora tivessem falado contra os sacerdotes e lideres corruptos de Israel em seus dias.
Discípulos de Jesus são chamados pelo seu mestre para serem pacificadores. Os pacificadores são chamados filhos de Deus. No entanto, é importante não confundir pacificador com passivo. Passivo é quem fica alienado e/ou criticando os que protestam. Pacificador é quem luta pela justiça social, quebrando ciclos de ódio, e sendo ponte entre grupos contrários.
Lutar contra a injustiça social é dever do discípulo de JesusSe por um lado fica claro que a Bíblia não dá base para protestos e tumultos violentos, é evidente que a luta por justiça social fez parte da vida e obra dos profetas de Israel. Amós, Oseias, Jeremias, Isaías, entre outros, sempre alertaram o povo de Israel que, mais do que sacrifícios religiosos, Deus clamava por justiça e misericórdia (colocar o coração junto na miséria do outro). Veja por exemplo como é duro o discurso na profecia de Isaías (1:13-17 – Versão A Mensagem):
“Chega de joguinhos religiosos! Não suporto mais essa encenação: Conferências mensais, agenda sabática, encontros especiais, reuniões, reuniões e mais reuniões – não aguento ouvir falar em reunião! São reuniões para isto, reuniões para aquilo. Chega de reuniões! Vocês me cansaram! Estou cansado de religião, de tanta religião, enquanto vocês continuam pecando. Quando fizerem a próxima oração coletiva, eu vou olhar para o outro lado. Não importa se oram alto, por muito tempo ou com frequência; eu não vou dar ouvidos. Sabem por quê? Porque vocês têm trucidado pessoas, e suas mãos estão cheias de sangue. Vão para casa e se lavem! Limpem essa sujeira toda. Esfreguem a vida até que saiam suas maldades, para que eu não seja mais obrigado a olhar para elas. Digam “não” para o mal. Aprendam a fazer o bem. Trabalhem pela justiça. Ajudem os oprimidos e marginalizados. Façam alguma coisa pelos sem-teto. Levantem a voz em favor dos indefesos”.
Antes de músicas bonitas, mãozinhas para cima, jejuns e orações poderosas, o que devemos mesmo é praticar o exercício da justiça, ser a voz dos oprimidos, a casa dos sem-teto, o socorro dos marginalizados. Não tem como negar, se alguém se diz “de Deus” deve se dirigir ao outro. Outro exemplo é o de Lucas 4: 17-21, quando Jesus diz que o espírito está sobre ele e por isso ele leva boa notícia aos pobres, liberdade aos presos e libertação aos oprimidos. A evidência de se estar cheio do espírito santo não é falar em línguas, orar forte ou cair no poder. Ao contrário do que é pregado por aí, a maior evidência do Espírito sobre as nossas vidas é a inclinação para o outro. Quando me inclino para trazer libertação, ajuda e socorro ao outro, então é verdade que o Espírito Santo está sobre mim. É o que fez Jesus. Com o Espírito do Senhor sobre Ele, se inclinou e deu sua própria vida para salvar a humanidade, pobre, presa, cega, oprimida e sem perspectiva de salvação.
É necessário se inclinar em ajuda ao outro. Não dá para ficar passivo. Como alguém já disse, “decidir não decidir é decidir deixar como está para ver como é que fica”.
O que se conclui?Toda manifestação não violenta e sem vandalismo que se levanta por causa da opressão, de direitos fundamentais usurpados, de abuso de vulneráveis devem ter o nosso apoio. Lutar pelo direito do outro é causa cristã, tem procedência e fundamento bíblico. A Bíblia abunda de versículos que justificam manifestações pela causa do outro, pelos sem-teto, pelos marginalizados, pelos órfãos, pelas viúvas. A Bíblia não traz versículos que justifiquem marcha para Jesus, pela família, contra a homossexualidade. Como bem disse o Rev. Augustus Nicodemus Lopes “não faz sentido as igrejas se organizarem em passeatas e manifestações e marchas para reivindicar privilégios para os crentes. Estas manifestações são civis, expressões sociais e não um culto. Por exemplo, ao protestarmos contra a aprovação da lei da homofobia devemos fazê-lo essencialmente porque se trata de uma violação da Constituição que garante a todos – e não somente aos crentes – o direito de consciência e de expressão”.
Que entendamos que lutar pelo direito do outro é exercer misericórdia, característica do cristão. Que entregar a vida pelo outro é mandamento bíblico (1 João 3:16). Que marchar pelo outro é a maneira mais eficaz de marchar para Jesus. Que servir é para todos e para a vida toda, e, enfim, que a fé sem obras é morta!
Fonte: http://minhavidacrista.com/especiais/protestos-e-os-discipulos-de-jesus-cristo/